Por Frei Jacir de Freitas
O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Ap 10,8-11. Trata-se da vocação profética do apóstolo João. Apocalipse, em grego, αποκαλυπσις, significa ‘tirar o véu’ do momento histórico e dos eventos futuros. Apocalipse pode também ser traduzido por ‘revelação’, como o fez o latim. Não entanto, não se trata de uma nova revelação, diferente daquela dos outros livros da Bíblia. Vejamos qual seria?
A literatura apocalíptica surgiu, entre os anos 200 a.E.C. a 200 E.C., para substituir o movimento profético. No profetismo bíblico, um profeta denuncia e anuncia um novo tempo. Na apocalíptica, a comunidade profetiza. Apocalíptica é uma profecia popular. Apocalipse não é um livro de medo e pavor, mas de esperança. João, escrevendo-o,por volta do ano 95 da E.C.,na Ilha de Pátmos, na Grécia,recorda a perseguição do cruel imperador Domiciano (86-96 E.C) e alimenta a esperança de um novo tempo para os cristãos.
O contexto, portanto, era de perseguição aos cristãos (Ap 1,9), de martírio (2,13), de dificuldades para viver a fé (2,3-4). O imperador era visto, pelos cristãos, como uma Besta indomável e cruel (13,3.12.14). Por causa dos falsos líderes que se diziam cristãos (2,6.15) e da perseguição dos judeus (2,9; 3,9), o desânimo tomava conta das comunidades (2,2).
As tradições judaicas e cristãs escreveram outros apocalipses, como o de Enoc, de Moisés, de Baruc etc., os quais foram considerados apócrifos. Os cristãos reconheceram como inspirado somente o Apocalipse de João.
O conteúdo desses apocalipses judaicos e cristãos versa sobre as visões, revelações de viagens de personagens aos céus ou aos infernos, onde se encontram com anjos, com Deus, com as almas de mortos e até com o anticristo. Os apocalipses são difíceis de serem interpretados? Sim.
O Apocalipse de João tem como objetivo animar as comunidades, representadas pelas setes Igrejas da Ásia, às quais João escreve cartas, para não perderem a fé na volta de Jesus, que estava próxima.
O esquema literário do Apocalipse é o seguinte: Prólogo (1,1-8); Visão inaugural (1,9-20) sobre o Filho do homem; Mensagem às sete igrejas (2-3): Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia; Visões da história (4-11): liturgia no céu, livro selado, cordeiro, grande multidão, oração dos santos, sete anjos e sete trombetas; Conflito e julgamento(12-20): o dragão e a mulher, as duas feras, o cordeiro e os 144 mil eleitos, sete taças da ira e do julgamento de Deus, a cidade prostituída e seu julgamentofinal. Novo céu e nova terra (21–22,5): nova Jerusalém celeste; Epílogo (22,6-21) ele (Jesus) voltará! (Maranatá)
O grande desafio para ler o livro do Apocalipse é o de entender o significado dos símbolos na sua linguagem enigmática. A cor verde, por exemplo, não é sinal de esperança, mas de doença, peste e morte; Babilônia não é Babilônia, mas Roma etc. Na época da ditadura militar no Brasil (1964-1985), o recurso da linguagem apocalíptica foi usado por nossos músicos. Chico Buarque e Gilberto Gil, em 1973, compuseram: “Pai, afasta de mim esse cálice!”.[1]
Fazendo alusão à censura militar, que matava, torturava e calava (cale-se) vozes de resistência, eles uniram a Paixão de Cristo com o sofrimento da nação brasileira, ao escreverem, dentre outros versos, o seguinte:
Pai, afasta de mim esse cálice, Pai!De vinho tinto de sangue. Como beber dessa bebida amarga? Tragar a dor, engolir a labuta? Mesmo calada a boca resta o peito. Silêncio na cidade não se escuta.
Retomemos o texto apocalíptico que inspira a nossa reflexão, Ap 10,8-11, ressaltamos que ele faz parte, no corpo do livro, da visão da história. João se sente chamado a profetizar diante das nações. Para que isso aconteça, ele tem que comer um livrinho aberto. No capítulo 5 do Apocalipse, fala-se de livro selado, lacrado com sete chaves, o qual está nas mãos de Deus. Somente Cristo ressuscitado poderia abri-lo. Esse livrinho aberto do capítulo 10 representa a história, a qual já estava desvelada, passada a limpo. Todos sabiam o que estava acontecendo. O desafio de João era o de interpretar os fatos da história. Isso vem dito no fato de que ele devia comer o livrinho para sentir o gosto amargo e doce do seu tempo presente. Comer e saciar-se de seu conteúdo, ainda que o sabor dele fosse amargo. Não bastava o doce entusiasmo da primeira hora do cristianismo, era preciso enfrentar as dificuldades advindas da besta romana, as amargas perseguições e os sofrimentos causados pelos romanos.
A profecia alimenta a esperança. Profetizar é nadar contra a maré, é mudar o rumo da boiada. É demonstrar que Deus, o Senhor da história, passou seu poder para Jesus. A ressurreição de Jesus é a prova de que Ele é o vencedor. Isso animou os cristãos da comunidade joanina e deve animar a todos nós, povo brasileiro, nesse tempo pós-eleição. Amargura e sofrimentos, em tempos difíceis, de rupturas nas famílias, na sociedade, na política e nas igrejas devem ser o ponto de partida para alimentar a profecia e a nossa esperança. Unamos nossas forças em prol de um de um mundo melhor, um Brasil melhor, sobretudo para os empobrecidos. Apocalipse é esperança. A nossa história e o nosso futuro foram desvelados, debatidos, discutidos à exaustão. Agora, é hora de recomeçar e esperançar! O resto é discussão inútil! Paz e bem!
CÁLICE. Intérpretes: Chico Buarque e Milton Nascimento. Rio de Janeiro: Polygram/Philips, 1978. 1 disco
Imagem: São João Evangelista em Patmos, de Tobias Verhaecht, domínio públlico (Wikimedia Commons)
Frei Jacir de Freitas Faria é Frade Franciscano da Ordem dos Frades Menores e Presbítero. Estudou no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, onde obteve o título de Mestre em Ciências Bíblicas. Doutor em Teologia pela Faje (BH). Complementou os seus estudos no México e Israel, onde fez, respectivamente, cursos de Leitura Popular da Bíblia, Arqueologia, Geografia e Topografia de Israel e Jordânia. Pesquisador da literatura apócrifa, os 180 livros que não foram reconhecidos como inspirados pela Igreja, Frei Jacir tem contribuído para a pesquisa e compreensão dessa literatura de forma crítica e ecumênica. Sobre essa temática, o seu último livro é: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte. Petrópolis: Vozes. Professor de Exegese bíblica. Foi reitor do Instituto São Tomás de Aquino (ISTA/BH) e Diretor Geral e Pedagógico dos Colégios Santo Antônio e Frei Orlando, ambos em Belo Horizonte (MG). Avaliador Institucional do MEC. Membro efetivo, ocupante da cadeira nº 20 da Academia Divinopolitana de Letras, bem como da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Tem publicado 25 livros, sendo um como organizador, dez autoria e quatorze em coautoria. Tem publicado mais 200 artigos em revistas e jornais.